Outra manhã. Dois dias
para a grande viagem.
Logo
que cheguei à escola, vi o Marcelo e sacudi minha mão para ele, apontando para
o colar em meu pescoço. Ele sorriu.
Sentei
no meu lugar.
-Minha
mãe achou lindo! – disse, pulando até mesmo o “oi” habitual.
-Haha,
fico contente então. O que vai fazer hoje de tarde?
Pensei
por um momento. As malas já estavam praticamente prontas (minha mãe é viciada
em arrumação). As aulas de dança já haviam acabado há alguns dias. As provas
finais haviam sido na semana passada. Na realidade, não havia muita coisa a ser
feita.
-Acho
que o que tenho de mais interessante pra hoje é levar o Smudge para passear.
O
garoto pensou por um momento.
-Qual a
raça do seu cãozinho?
-É um
Lhasa Apso. Por quê?
-Eu
tenho uma Sharpei. Será que eles passeariam juntos?
Sorri
com a ideia.
-Acho
que teremos de conferir essa tarde.
A
professora entrou na sala dando berros. Pelo jeito ela já havia corrigido as
provas. Virei-me para frente e disse que depois conversaríamos mais.
A aula
passou mais rápido do que no dia anterior, tenho que admitir. O Renan faltara
(mas, por incrível que pareça, só percebi isso na terceira aula), e tivemos uma
dinâmica em grupo na classe de sociologia.
De
tarde, às 16 horas, o Marcelo veio me buscar em casa para passearmos com nossos
cachorros.
Logo
que ele chegou, percebi que as dúvidas sobre se os nossos cachorros se dariam
bem estavam acabadas. De cara, eles se amaram.
-Qual é
o nome dela? – perguntei após dar um abraço no meu novo amigo, que estava de
cabelo molhado assim como eu, e ir fazer carinho na cadelinha.
-Pâm.
-Só
Pâm? – disse, enquanto levantava e segurava mais forte na coleirinha do Smudge,
que estava louco pela nova amiga.
-Por
que “só”?
-Bem, -
falei, já começando a andar ao lado de Marcelo. – são apenas três letras.
-Mas
existem nomes de pessoas com apenas três letras, não existem?
Dei
risada. Ele estava certo, certíssimo. Meu nome mesmo era prova disso.
-Touche.
Caminhamos
por algum tempinho em silêncio, acompanhando os cachorrinhos que pareciam em êxtase.
-Acho
que você é a primeira amiga que faço naquela escola. – disse rápido, mudando
completamente o assunto. – Quer dizer, se for minha amiga.
Torci o
nariz como sempre fazia quando algo me deixava confusa.
-Espera,
mas você estuda lá faz tempo, não estuda?
-Sim. –
disse, mais cabisbaixo. – Quatro anos. Mas não tenho muitos amigos, acho que
sou meio diferente, deve ser por isso.
-Defina
“diferente”. – falei, pensando sobre o que ele dissera.
-Quer
dizer, sou meio tímido. Tiro boas notas (o que, na verdade, acontece porque não
tenho muito a fazer em casa), não jogo futebol, não gosto de sair e beber, nem
curto ir a festas. Praticamente não falo também.
Concordei.
Não havia porque discordar, era a verdade. Tão verdade, que eu só sabia seu
nome por causa de um trabalho em que fizemos juntos e eu tivera de escrever os
nomes na cartolina.
Paramos
de andar por um momento.
-Marcelo,
- disse. – você é especial. Pelo menos está sendo um amigo muito bom. Vou
sentir sua falta em Paris.
Por um
segundo, vi um sorriso em seu rosto. O garoto virou-se para frente novamente e
voltamos a andar.
-Sei
que é meio pessoal, mas sempre tive uma dúvida. Posso perguntar? – disse ele,
após alguns instantes.
-Claro,
pergunte.
-Você e
o Renan. Porque terminaram?
Ui,
legal. Achou meu calcanhar de Aquiles. E o pior é que eu não sabia como
responder àquela pergunta.
-Sinceramente?
Eu não sei. – respondi. – Quer dizer, na teoria eu sei sim. Eu não tinha muito
tempo para ele por causa da escola e da dança. Mas havíamos feito tantas
promessas. Em um dia ele disse que superaríamos tudo isso juntos, que não
iríamos nos separar porque nos amávamos... E, na semana seguinte, disse que
estava cansado da minha falta de tempo e que nem o amor que sentia podia superar
isso. Na prática, a desculpa não fez muito sentido para mim.
Marcelo
parou e ficou ali, até que olhou no meu rosto. Lágrimas já estavam quase
descendo pela minha face em relembrar de tudo aquilo. Percebi que nunca dissera
aquilo em voz alta, que sempre tentara me enganar dizendo que fora a falta de
tempo que nos fizera terminar, quando, no fundo, eu sabia que não podia ser
isso.
-Lua? – falou Marcelo, erguendo
meu rosto enquanto uma lágrima descia. Não queria que ele me visse chorar. –
Foi isso que ele disse a você?
Naquele
instante, fiquei um pouco confusa. A maneira que Marcelo fizera aquela
pergunta... Parecia até mesmo que ele sabia mais do que eu. Quando olhei em
seus olhos, percebi que estava certa.
-Sim,
foi o que ele me disse. – respondi, sem entender muito bem o que estava
acontecendo.
-E você
acredita nisso? – falou, novamente me surpreendendo. Estávamos em uma ponte que
passava em cima de um pequeno laguinho, e ali havia um banco. Sentei, tentando
pensar.
-Sim.
Bem, na realidade não sei. Sinto que há algo a mais. Por que, o que você sabe? –
perguntei, soltando tudo de uma vez. Até as lágrimas pararam de ameaçar cair.
Marcelo
sentou-se ao meu lado. Ambos ainda segurávamos nossos cachorros.
-Lua,
eu acho que sei por que ele quis terminar.
Segurei
a respiração.
-Sabe?
-Talvez
eu saiba, talvez esteja pensando errado. Mas,na semana em que vocês se
separaram, aconteceu algo.
Olhei
em seus olhos, esperando que continuasse.
-Aconteceu
uma festa. Por incrível que pareça, eu fui. Era uma festa na casa de uma amiga
da minha família, fui meio obrigado a ir. Lembro que cheguei à casa e o Renan
também estava lá. Claro, ele não me percebeu. Mas, em certo momento, o vi com
uma garota que nunca vira antes. – ele parou por um segundo, como se tivesse
medo de continuar.
-Com...
Uma garota? Poderia ser a irmã dele, ou uma prima, ou...
-Lua...
Eles estavam se beijando.
E
aquela informação foi demais para mim. Já fazia dois anos, eu sei, mas a
sensação de traição veio com tudo.
As
lágrimas começaram a rolar, eu estava desolada como há tempos não ficava.
Marcelo não sabia muito bem o que fazer naquele momento, mas colocou a minha
cabeça em seu peito e ficou ali, me abraçando.
-Lua,
acalme-se, já faz tempo.
-E-eu
s-se-sei. – dizia, sem conseguir proferir palavras direito.
Depois
de alguns minutos assim, parei de chorar e me acalmei. Marcelo estava certo, já
fazia muito tempo.
Levantei
da camisa encharcada dele.
-No-nossa,
desculpa por isso. Desculpa por chorar.
Ele
balançou a cabeça negativamente.
-Ei,
não fale isso. Amigos são pra essas coisas, não são?
Eu, de
repente, fui fisgada por seus olhos. O azul escuro deles me acalmou por alguns
instantes.
Renan
fora um babaca. Talvez não tenha aguentado o peso da traição e terminara
comigo, mas, de qualquer jeito, um babaca. Deixara-me pensar, esse tempo todo,
que o problema fosse comigo.
Mas,
naquele instante, o Renan não importava. Nossa história juntos não importava.
Tudo
que eu enxergava, ali, na minha frente, eram os olhos mais lindos que já vira.
O azul
deles, tão forte quanto o mar, transportava tranquilidade. E eu senti algo
estranho dentro de mim, algo que não sentia há muito tempo de verdade.
O
garoto segurou em minhas mãos. Minha cara inchada devia estar um nojo, sem
contar que ainda estava totalmente molhada de tantas lágrimas, mas nada mais
importava.
Somente
aqueles olhos.
Tenho
certeza de que ele sentiu a mesma coisa, pois começou a se aproximar. E eu só
queria ver aqueles olhos mais de perto, senti-los em mim.
Estávamos
a milímetros de distância quando eu não precisei mais vê-los. Sabia que
estariam cravados em mim por muito tempo.
Fechei
meus olhos e nossas bocas se uniram. Foi um beijo rápido, salgado pelas
lágrimas do meu rosto, mas perfeito. Nunca havia sentido algo assim antes,
tinha certeza. Tudo em meu corpo sorria.
Ficamos
com os lábios pressionados, até que ouvi um latido e fui para trás,
rapidamente.
Marcelo
levantou de supetão, mais vermelho impossível.
-Talvez...
– eu disse, confusa. – Talvez seja melhor voltarmos.
-Sim,
voltarmos.
Voltamos
para casa sem tocar no assunto. Conversamos sobre outras coisas, mas, a todo o
momento, a sensação calorosa e perfeita daquele beijo voltava até mim e eu não
sabia mais como ignorá-la.
Despedimos-nos
como dois amigos e eu fui para casa, bem mais calma. Contanto, durante aquela
noite, não foi a traição de Renan que invadiu meus pensamentos. Tudo que vinha
até mim era o fato de que eu havia gostado de beijar Marcelo.
E
talvez estivesse me apaixonando novamente.
By Babi
nossa, que lindo !
ResponderExcluirescreve muito bem....